A JUSTIÇA E A ACUPUNTURA BRASILEIRA
Dr. Sohaku Bastos*
Há tempos vemos o desenrolar de demandas judiciais impetradas por instituições médicas brasileiras contra autarquias profissionais da saúde e, até mesmo, contra a União Federal com o intuito de fazer prevalecer suas ambições corporativistas em relação à prática da Acupuntura no Brasil. Essas instituições médicas, dentre elas, conselhos federal e regional, sindicatos e associações, insurgem-se de forma virulenta, no sentido de estabelecer limites de atuação profissional para os outros integrantes do sistema nacional de saúde, sem um olhar crítico sobre a sua própria esfera de atuação profissional.
A última tentativa do segmento médico sindical foi o ajuizamento da ação civil pública (Proc. nº 2006.71.00.033780-3 – TRF, 4ª Região) impetrada pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul - SIMERS contra a União Federal com o objetivo de obter a nulidade da Portaria nº 971/2006 do Ministério da Saúde, especialmente no que concerne à autorização da prática da Acupuntura por profissionais não-médicos. Tal Portaria em questão foi criada pelo Ministério da Saúde com o objetivo de estabelecer critérios para a oferta de novos procedimentos para a rede pública de saúde, ou seja, para atender a população mais carente da sociedade, através de recursos terapêuticos complementares, dentre os quais: a Acupuntura, a Homeopatia, a Fitoterapia, a Crenoterapia e o Termalismo Social.
A União Federal, naturalmente, contestou de pronto o pleito sindical corporativista, tendo obtido êxito logo em primeira instância. Insatisfeita com a decisão malograda, o SIMERS recorreu da sentença, e mais uma vez viu seu pretenso direito ser negado por unanimidade pelos desembargadores que compõem a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em acórdão datado de 13/07/2011. Assim sendo, trata-se de decisão recente que reflete o alinhamento atual do poder judiciário com a necessidade de se ampliar a oferta de procedimentos básicos da saúde à parcela da população economicamente desfavorecida.
Em sua defesa, a União alegou a ilegitimidade ativa do sindicato em tela, além de ressaltar a inépcia da inicial e a inadequação da via eleita, uma vez que ao sindicato cabe, unicamente, a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria médica, inclusive em questões judiciais ou administrativas, porém não cabendo a este dispor sobre regulamentação, fiscalização e controle das políticas de saúde, que são de competência exclusiva do Ministério da Saúde e da União Federal, responsáveis pela direção do Sistema Único de Saúde - SUS.
As instituições médicas já mencionadas têm criado uma grande celeuma sobre a legalidade da Portaria nº 971/2006, especialmente no que tange à autorização destinada a não-médicos exercerem a atividade profissional com a Acupuntura, bem como a promoção de práticas terapêuticas que, segundo elas, carecem de comprovação científica. Entretanto, tais alegações violam as normas que tutelam a liberdade de trabalho, bem como ofendem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, senão vejamos:
1) A Organização Mundial da Saúde – OMS – vem há mais de 40 anos incentivando seus 191 Estados-membros a inserirem os sistemas médicos tradicionais, complementares ou alternativos nos sistemas convencionais de saúde, o que deu origem ao documento de “Estratégia da OMS sobre medicina tradicional 2002-2005, preconizando o desenvolvimento de políticas, observando os requisitos de segurança, eficácia, qualidade, uso racional e acesso”. Ora, como é que a OMS, considerada o mais prestigiado órgão internacional da saúde, vinculado à Organização das Nações Unidas – ONU, reconhece há anos o valor social e científico desses sistemas tradicionais médicos de saúde, e as instituições médicas brasileiras “ignoram” tal fato? O que está por trás dessa miopia de política profissional? Será que o fabuloso lucro da indústria farmacêutica está sendo ameaçado com a disseminação das Terapias Naturais e Complementares, incluindo as Plantas Medicinais, a Homeopatia, a Acupuntura, entre muitas outras, no serviço público e privado de saúde?
2) Segundo o relato do Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 2006.04.00.034793-2, fica entendido que: “A Acupuntura é uma tecnologia de intervenção em saúde, inserida na medicina tradicional chinesa, sistema médico complexo, que aborda de modo integral e dinâmico o processo saúde-doença no ser humano, podendo ser usada isolada ou de forma integrada com outros recursos terapêuticos, e que a MTC também dispõe de práticas corporais complementares que se constituem em ações de promoção e recuperação da saúde e prevenção de doenças...”. Assim sendo, não há que se falar de interdependência desses sistemas tradicionais, incluindo a Acupuntura, à atividade profissional médica no Brasil ou a subordinação da Acupuntura aos seus órgãos representativos, sob pena de descaracterização dessa terapia oriental, de sua prática e de seus objetivos.
3) Quanto à carência de regulamentação dessas práticas no Brasil, em particular do exercício da Acupuntura, o mencionado magistrado afirma: “Não sendo a prática da acupuntura regulamentada no Brasil nem evidenciada que ela caracteriza ato médico por qualquer documento oficial, não comprovada, ainda, por qualquer dado estatístico oficial, a evidência do risco da sua prática por outros profissionais, não estão presentes os requisitos do art. 273 do CPC...”. Dessa forma, cai por terra a alegação de que para se praticar a Acupuntura no Brasil se faça necessário ser médico inscrito no CRM. Ao contrário, em que pese à boa integração da classe médica nos serviços de Acupuntura, não é o médico a autoridade digna de crédito nessa área do saber, mas sim aqueles que obtiveram a graduação em Acupuntura e/ou Medicina Oriental em instituições de ensino de países onde essas práticas são reconhecidas e promovidas há centenas de anos, tais como: China, Japão, Coréia, Índia e Sri Lanka, nos quais existe massa crítica científica e social suficientes para a promoção de pesquisa científica e ensino de alta qualidade. Isso ocorre, também, em alguns países ocidentais, como os EUA e a Inglaterra, principalmente.
4) Em relação à Fitoterapia, a situação também chama a atenção, como bem diz o referido magistrado: "No ramo da Fitoterapia, o objetivo é ampliar as opções terapêuticas oferecidas aos usuários do SUS com garantia de acesso a plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos, que poderão ser produzidos pelos laboratórios públicos. É de notar que a própria OMS estimula práticas integrativas à medicina convencional, reconhecendo que 80% da população dos países desenvolvidos utilizam práticas tradicionais nos cuidados básicos de saúde, sendo que 85% utilizam plantas ou preparados... O Brasil tem enorme tradição de uso de plantas medicinais e tecnologia para validar e aprimorar cientificamente o conhecimento a respeito". Considerando as observações supracitadas, depreende-se a falta absoluta de uma visão político-social das entidades médicas brasileiras em relação às políticas públicas em saúde do Ministério da Saúde, mormente em relação à regulamentação da Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do mencionado Ministério. Mais uma vez nos vem à mente a seguinte indagação: por que um segmento da classe médica se sente incomodado com a inserção das práticas das terapias integrativas e complementares no serviço público de saúde para atender pacientes carentes? O que está explicito nas manifestações das entidades médicas brasileiras é a alegação de que não existe comprovação científica no emprego da Fitoterapia, contrariando as recomendações da OMS. Lamentavelmente, os segmentos médicos brasileiros fazem críticas absurdas em relação ao emprego de plantas medicinais no serviço público. Uma delas aconteceu em reportagem recente da TV Globo com o Dr. Dráuzio Varela, o qual, na qualidade de médico, tentou induzir a população a não utilizar a Fitoterapia pelo risco de intoxicação, além de alegar outros efeitos danosos, desqualificando os profissionais não-médicos que trabalham com esses recursos. O que está por trás dessa campanha de forte rejeição das riquezas da flora medicinal brasileira?
5) A Carta Magna, em seu art. 196, estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção". Isso significa que, cabe ao Poder Público a obrigação e o dever de tornar efetivas as prestações de saúde - preventivas e de recuperação - mediante políticas públicas, viabilizando e dando concreção ao que prescreve o dispositivo constitucional citado e sobre o qual repousa a legalidade da Portaria nº 971/2006.
6) A ousadia do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, autor da ação civil pública nº 2006.71.00.033780-3 contra a União Federal a respeito da prática da Acupuntura por não-médicos, foi tão grande que a Advocacia Geral da União se manifestou argumentando: “... enquanto não regulamentado o art. 5º, XIII, da Carta Magna, esse dispositivo possui eficácia plena e imediata, fato que torna livre o exercício de qualquer atividade laboral sem regulamentação específica, o que é o caso da acupuntura, visto inexistir no ordenamento jurídico pátrio qualquer lei que regulamente o exercício desta prática”. Com relação à homeopatia afirmou, também, que o seu exercício por profissionais não-médicos está previsto pela Lei nº 5.991/73. No mesmo Processo afirma que: “Não há na espécie, qualquer invasão à área de atuação médica, visto representarem, a medicina convencional e a chamada “medicina alternativa” práticas distintas, com as áreas de atuação bem delimitadas”. Assim sendo, não há que se confundir a prática da Acupuntura com a prática convencional da medicina alopática. A primeira voltada à promoção da saúde e ao equilíbrio vital do homem, e a segunda, precipuamente, voltada à cura de doenças, levando, assim, a Juíza Federal Marciane Bonzanini a proferir a seguinte sentença: “Ante o exposto, julgo improcedente a pretensão deduzida pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul – SIMERS contra a UNIÃO, extinguindo a presente ação com julgamento do mérito, forte no art. 269, inc. I, do Código de Processo Civil”.
Muitas demandas judiciais, tendo como autores entidades médicas contra autarquias federais de outras profissões da saúde, no sentido de tentar a nulidade das Resoluções a respeito do impedimento da prática da Acupuntura por outros profissionais da saúde, não lograram êxito. Foi criado recentemente o Colégio Médico de Acupuntura que, reincidentemente, processa em vão outras corporações da saúde que albergaram a Acupuntura como uma especialidade ou como técnicas terapêuticas complementares, muitos anos antes do Conselho Federal de Medicina reconhecê-la como especialidade médica. Tal iniciativa do referido Colégio não possui nenhuma fundamentação legal, social ou científica.
Essas decisões judiciais, que não são poucas, mais do que emblemáticas, dão as garantias de que o exercício da Acupuntura no Brasil, assim como das terapias mencionadas na Portaria nº. 971/2006, é livre até que uma lei ordinária regulamente a profissão.
A jurisprudência está estabelecida e nenhum profissional da saúde pode alegar impedimento ou ter receio de estudar e praticar a Acupuntura no Brasil, sendo fiscalizados, naturalmente, por seus conselhos profissionais ou pelo Serviço Nacional de Vigilância Sanitária, sobretudo os profissionais que carecem de conselhos de classe.
O poder executivo tem tido muita dificuldade em promover as práticas terapêuticas integrativas e complementares no serviço público de saúde, como podemos observar; e o poder judiciário brasileiro tem ficado com o ônus de julgar demandas judiciais que poderiam ser evitadas se o Congresso Nacional legislasse com mais eficiência e rapidez sobre a matéria em questão. Diversos projetos de lei tramitam e tramitaram na Câmara e no Senado Federal a respeito da regulamentação profissional nessas áreas e, até o presente momento, nada aconteceu de concreto pelo fato de os congressistas sofrerem pressões “ocultas” de segmentos corporativistas no sentido de arquivarem tais projetos. Entretanto, não há mais como se procrastinar essas regulamentações sob pena de o Brasil ficar a reboque da realidade internacional e na contramão das recomendações da OMS.
Ao ler a frase do ilustre jurista brasileiro Ives Gandra, quando disse que: “O corporativismo tem que se submeter à democracia e não impor-lhe suas regras”, recordei-me de que há muitos anos, época em que eu estudava Acupuntura e Medicina Oriental em países do Oriente, ouvi de meu professor Dr. Anton Jayasuriya palavras sábias a respeito de quem poderia exercer a Acupuntura e, surpreendentemente, ele afirmou com simplicidade: “Todos aqueles que sabem Acupuntura!”, ou seja, todos aqueles que tenham uma formação acadêmica adequada em Acupuntura e Medicina Oriental, pelo fato de se tratar de um patrimônio cultural da humanidade, reconhecido pela OMS/ONU.
Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2011.
Veja o inteiro teor da Sentença Judicial aqui:
*Dr. Sohaku Bastos, M.B., O.M.D., Ph.D., é Cônsul-Geral do Sri Lanka no Rio de Janeiroa.h.
(Graduado em medicina oriental no Japão - 1972, onde se especializou em Acupuntura e Eletroacupuntura, concluindo também o mestrado nessa área do saber. Concluiu o bacharelado em Medicina e o doutorado em acupuntura no Sri Lanka, além de ter recebido treinamento médico em MTC na China. Foi o Introdutor da Eletroacupuntura Sistêmica no Brasil, em 1974. É, atualmente, o Presidente da Sociedade Brasileira de Eletroacupuntura. Sohaku Bastos fundou diversas instituições de ensino e entidades associativas de Acupuntura e Medicina Oriental no Brasil e no Exterior nos últimos 40 anos. Exerceu nos anos 90 no Brasil a função de Juiz Federal do Trabalho Classista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª- Região).
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